Três dias de festas estão programados para comemorar o centenário de Elizabeth Teixeira, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado a mando de fazendeiros paraibanos em 2 de abril de 1962. A morte de seu companheiro se tornou símbolo de resistência e luta pela terra, justiça social e reforma agrária e fez de Elizabeth uma liderança dos trabalhadores rurais muito perseguida durante o regime militar. Sua história foi resgatada pelo cineasta Eduardo Coutinho, no documentário Cabra Marcado para Morrer, a exemplo do que Walter Salles Junior viria a fazer em Ainda Estou Aqui, com a história de Eunice Paiva, viúva de Rubens Paiva, morto em dependências do Exército na década de 1970 (leia crítica abaixo).
Elizabeth Altina Teixeira nasceu em 13 de fevereiro de 1925, na comunidade de Antas do Sono, então município de Sapé, na zona da mata da Paraíba. Filha mais velha de Altina Maria da Costa, de origem latifundiária, e de Manoel Justino da Costa, de família de pequenos proprietários de terra, desde jovem, demonstrou inconformismo com as injustiças do campo. Após a morte de João Pedro, ela assumiu a presidência da Liga Camponesa de Sapé e, depois, da Liga no Estado, dando continuidade às lutas por trabalho digno, reforma agrária e justiça no campo.
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Presa várias vezes em atos pela reforma agrária, perseguida pela ditadura e por jagunços, teve que ir para a clandestinidade. Para fugir da perseguição, adotou um nome falso e ficou escondida por 17 anos. Elizabeth teve de entregar os 11 filhos a parentes e amigos durante os anos de perseguição. No próximo dia 13, porém, todos os seus familiares e amigos estarão juntos, no Festival da Memória Camponesa do Sapé, quando será lançada a exposição Elizabeth Teixeira: 100 faces de uma mulher marcada para viver.
A celebração de seu centenário conta com apoio do governo federal, governo da Paraíba e da Prefeitura de Sapé, além do engajamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). As ligas camponesas foram associações de trabalhadores rurais criadas inicialmente no estado de Pernambuco, posteriormente na Paraíba, no antigo estado do Rio de Janeiro, em Goiás e em outras regiões do Brasil. Exerceram intensa atividade no período que se estendeu de 1955 até a queda de João Goulart, em 1964. Ao lado de Francisco Julião, seu fundador, João Pedro era um dos principais líderes das ligas camponesas, das quais se tornou o maior símbolo, após sua morte.
O filme Cabra Marcado para Morrer, documentário de Eduardo Coutinho, conta essa história. Começou a ser filmado em 1964 e só foi concluído em 1984, quando Elizabeth foi reencontrada pelo cineasta.
Na tarde de 2 de abril de 1962, João Pedro foi emboscado e assassinado. Seguia a pé pela estrada entre Sapé e a cidade vizinha de Mari, onde participaria de uma reunião da Liga Camponesa, quando foi surpreendido pelos pistoleiros, que dispararam vários tiros contra ele. Teixeira morreu no local, sem chance de defesa. O crime foi planejado para eliminar sua influência e enfraquecer a organização dos trabalhadores rurais.
Duas Mulheres, duas ausências, um mesmo drama – Por Lilia Lustosa, crítica de cinema, especial para o Correio
Recentemente, o jornalista Xico Sá analisou nosso candidato ao Oscar 2025, Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles, e traçou um paralelo entre sua protagonista Eunice Paiva e Elizabeth Teixeira, a protagonista de Cabra Marcado Para Morrer (1964-1984), obra-prima do saudoso Eduardo Coutinho. Duas obras impactantes que giram em torno de duas mulheres, duas ausências e suas drásticas consequências.
Eunice e Elizabeth. Duas viúvas de uma mesma fatalidade. Ambas privadas da presença de seus companheiros de vida, assassinados pelos desmantelos de um sistema de extremos, de um (des)governo que sabia muito bem aonde queria chegar, não se preocupando com os meios para atingir seus fins.
Eunice é a esposa do Deputado Federal caçado do PTB, Rubens Paiva. Elizabeth é esposa de João Pedro Teixeira, um dos fundadores das Ligas Camponesas na Paraíba. Ambos assassinados por defenderem direitos humanos básicos, a liberdade e a terra. O primeiro, morreu em 1971, em pleno período de chumbo da ditadura, e o segundo, em 1962, dois anos antes de estourar o golpe. Dois crimes que passaram impunes e que foram soterrados para que a verdade e a vergonha não viessem à tona.
Eunice Paiva é a grande estrela do momento. Saiu do anonimato e tornou-se exemplo de resiliência, determinação e força, graças à brilhante atuação de Fernanda Torres, que a interpreta em Ainda Estou Aqui, e também, claro, à excelência do roteiro e da direção do filme, que, por sua vez, é baseado no também magnífico livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva.
Elizabeth Teixeira é a luz de Cabra Marcado Para Morrer, documentário feito em duas etapas, interrompido pela ditadura militar em plena fase de realização e que teve nosso conterrâneo velho de guerra, Vladimir Carvalho, em sua equipe. Um longa que, além de ser o maior filme de Coutinho, traz em si as marcas físicas da censura, impregnado que está pelas digitais dos desaparecidos. Elizabeth, na ocasião, teve de fugir, esconder-se e espalhar seus onze filhos pelo território brasileiro. Uma “heroína nacional”, como bem sublinha Sá, e que ainda segue na luta, completando no próximo dia 13, cem anos de vida, data em que receberá uma homenagem do MST em Sapé, Paraíba.
Duas grandes histórias, dois grandes filmes, muito diferentes em sua poética, mas que retratam de forma igualmente brilhante a ausência imposta à vida de duas mulheres “comuns”. Viúvas que, de uma hora para outra, tiveram as vidas desconstruídas, enxergando a fuga como a única salvação para seguir adiante. Mães de família que tiveram de assumir as rédeas da casa, da vida e do destino dos filhos a fim de sobreviver. Guerreiras que seguiram lutando, cada uma à sua maneira, para que a batalha travada por seus maridos não fosse em vão.
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Cabra Marcado para Morrer foi lançado em 1984, ainda na ditadura. E por isso mesmo, não fez o estardalhaço que faz hoje Ainda Estou Aqui, que já arrebatou alguns prêmios importantes e que tem a chance de redimir seu companheiro de 64/84 e mostrar ao mundo o que acontecia no Brasil daqueles tempos. Histórias tantas vezes negadas ou apagadas, mas que urgem ser contadas para que jamais se repitam.
Em Ainda Estou Aqui, o foco, porém, não é a ditadura, que aparece mais como pano de fundo. A lupa é colocada em Eunice, em seu humanismo, em sua sensibilidade, sua dor, sua força e na luta interna que teve de travar para seguir tocando a vida “normalmente”, de modo a não prejudicar a família. E esse é o grande acerto do filme: tocar em uma ferida que não é só de Eunice, nem de Elizabeth, mas que é também a de muitas Marias e Clarices espalhadas por aí. Uma escolha nada óbvia, que foge do esperado, que desvia do melodrama, do choro fácil, da pieguice e que se fortalece pela excelência do elenco, pela beleza da fotografia, pela justeza da reconstituição história, convertendo-se desde já em um verdadeiro clássico.
Cabra Marcado Para Morrer e Ainda Estou Aqui trazem a marca de tantas mulheres que tentaram e ainda tentam preservar a memória deste país e por isso mesmo precisam ser assistidos, analisados e debatidos em todas as esferas da sociedade brasileira.