Eleito com 57,2% dos votos, o novo prefeito de Niterói (RJ) não só derrotou o deputado federal bolsonarista Carlos Jordy (PL) no segundo turno, como assegurou para o trabalhismo brizolista quatro décadas de predomínio político na ex-capital fluminense. Desde a promulgação da Constituição Brasileira, em 1988, o grupo ligado ao “socialismo moreno” do ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro Leonel Brizola (fundador do PDT, morto em junho de 2004) domina o cenário eleitoral da cidade de meio milhão de habitantes.
Niterói será, a partir de 2025, a maior das 151 cidades sob o comando do PDT e o último reduto do brizolismo. O Correio conversou com Rodrigo Neves (que já governou o município por dois mandatos, entre 2013 e 2020) para tentar descobrir por que, apesar dos revezes da esquerda em todo o país, o eleitor de Niterói ainda tem tanta afinidade com a corrente trabalhista, que influencia a política brasileira desde que Getúlio Vargas fundou o PTB, em 1945, e mesmo passadas duas décadas da morte de Leonel Brizola, o maior discípulo do caudilho gaúcho.
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A cidade ostenta o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado — é a única com taxa “muito alta”, a maior da escala — e o 6º lugar do país em cobertura de saneamento básico. Mas o que chama a atenção é o fato de ser a única, entre as 22 da Região Metropolitana do Rio, que não tem áreas controladas por milicianos.
Mesmo não sendo atribuição do Executivo municipal, os bons resultados no combate à violência urbana fizeram com que Neves fosse o único prefeito eleito em outubro convidado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para acompanhar o lançamento da nova política de segurança pública do governo federal, na semana passada, em Brasília. Aliás, a capital federal e a ex-capital fluminense têm, em comum, o mesmo orgulho de contar com as maiores coleções de projetos do mais famoso arquiteto brasileiro, Oscar Niemeyer. Acompanhe os principais trechos da entrevista:
A que o senhor atribui o fato de Niterói ser governada, desde a redemocratização, pelo mesmo grupo político, ligado ao ideário do ex-governador Leonel Brizola?
O trabalhismo tem raízes profundas em Niterói desde o período em que a cidade era a capital do Estado do Rio de Janeiro, com a presença do presidente Getúlio Vargas e de um dos líderes trabalhistas mais importantes do período pré-ditadura (militar), que foi o governador Roberto Silveira. Quando Niterói perdeu a condição de capital do estado, muitos diziam que a cidade iria sucumbir, virar um subúrbio do Rio de Janeiro. Esse ciclo de governos progressistas e trabalhistas conseguiu reinventar a cidade e transformá-la na melhor em qualidade de vida dentre os 92 municípios do estado — também é uma das cidades com a melhor qualidade de vida do Brasil — e a única que não tem milícias dominando territórios e bairros entre os 22 municípios da Região Metropolitana do Rio. Evidentemente, tudo isso reflete a confiança do cidadão de Niterói no trabalhismo, no PDT. Por isso, tivemos uma vitória muito ampla nesta eleição.
A vitória do senhor é citada como uma das mais expressivas da esquerda, por ter derrotado um candidato muito ligado ao bolsonarismo, o deputado federal Carlos Jordy. O que o senhor ofereceu ao eleitor?
Das 151 cidades que serão governadas pelo PDT, Niterói é a mais importante. Vencemos em todas as regiões, classes sociais e em todas as zonas eleitorais. Eu acredito que tem o aspecto do legado. Assumi meu primeiro mandato com 35 anos de idade. Fizemos transformações e resgatamos a autoestima da cidade. Mas, para além do legado, acredito que conseguimos consolidar a confiança de amplos segmentos do eleitorado não necessariamente de esquerda — de conservadores lúcidos e uma centro-direita civilizada — que compreenderam que o meu adversário representava, e representa, o que há de pior na extrema-direita brasileira. Um terceiro aspecto é o compromisso firme de fazer um governo ainda mais inovador, criativo e diferente, que supere os novos desafios de Niterói.
Que novos desafios são esses?
A busca da qualidade dos serviços de saúde e educação. Niterói foi uma referência na construção do programa do Médico de Família, uma referência na pandemia, e inovamos ao trazer da Austrália o Método Wolbachia (de disseminar ovos do mosquito Aedes aegypti contaminados por uma bactéria que impede que se desenvolvam), em parceria com a Fiocruz. Fomos a única cidade a não ter epidemia de dengue no Rio, no ano passado. Entretanto, temos desafios, mas o nosso objetivo é transformar a saúde de Niterói em um dos melhores sistemas públicos do Brasil. Outro desafio é promover a transição da economia de Niterói em uma economia verde, do conhecimento, criativa, com a transformação do centro da cidade em um grande hub de inovação e de empresas de base tecnológica.
Como a cidade consegue atrair esse tipo de investimento?
Propiciando um ambiente muito favorável a quem tocar a sua vida e empreender. Nós acreditamos muito nesses novos segmentos da sociedade brasileira que estão empreendendo e querem um Estado que funcione. A esses três elementos (saúde, educação e transição econômica), junta-se o programa “Vida nova no morro”, que vai construir uma nova perspectiva para a população que vive nas favelas, com um arquiteto de família e um programa de melhorias habitacionais — reboco, pintura das casas, manutenção de telhados. O arquiteto de família vai cuidar da porta da casa para dentro. E ainda temos a consolidação de uma política municipal de segurança pública que proteja Niterói das milícias e a faça, cada vez mais, uma cidade mais segura.
Esse foi um dos motivos que fizeram com que o presidente Lula o convidasse para a reunião com ministros e governadores, na quinta-feira, sobre a nova política nacional de segurança. O que Niterói tem para oferecer, já que essa é uma função prioritária dos governos estaduais e federal?
Niterói estruturou, em meu primeiro mandato, o plano municipal de segurança pública que produziu resultados extraordinários. Para se ter uma ideia, reduzimos em 90% o número de roubos de veículos. Implantamos esse plano com o Centro Integrado de Segurança Pública, com monitoramento de todas as regiões, cerco eletrônico (com câmeras), aumento do efetivo da guarda municipal de 150 para quase mil homens. Com esse conjunto de estratégias integradas, obtivemos os melhores resultados de segurança pública em uma região metropolitana que é a mais caótica do país, que é a do Rio. Niterói, com 500 mil habitantes, pode inspirar iniciativas do poder público local na prevenção da violência urbana.
Mas essa não é uma atribuição do governo estadual?
Esse modelo atual, que coloca exclusivamente sob os governos estaduais a execução das políticas públicas de segurança, já deu demonstrações claras de que não funciona. As melhores experiências internacionais de segurança pública, como em Nova York (Estados Unidos) e em Medelín (Colômbia), foram lideradas pelas prefeituras e pelo poder público local. O presidente Lula quer criar uma Polícia Federal ostensiva, a partir da redefinição da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Mas a PRF tem 13 mil homens e mulheres, enquanto as cidades brasileiras, hoje, têm mais de 300 mil guardas municipais. Nós conseguimos na Reforma Tributária uma mudança importante: ampliamos o escopo de utilização da Contribuição de Iluminação Pública (Cosip) não apenas para melhorar a iluminação das cidades, mas para desenvolver e implementar centros integrados de monitoramento de segurança pública, como nós fizemos em Niterói. Hoje, as cidades podem obter financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) ou desenvolver com recursos próprios, a partir da Cosip, esses centros integrados.
Como o senhor vê o Susp (Sistema Integrado de Segurança Pública), cujo projeto de emenda à Constituição (PEC) foi apresentado em Brasília aos governadores e ao senhor pelo presidente Lula?
A constitucionalização do Susp, proposta pela PEC da Segurança Pública, é um passo importantíssimo para começarmos a enfrentar a maior epidemia do Brasil, que é a epidemia da violência urbana. Na reunião em Brasília, eu falei que, diferentemente do Sistema único de Saúde (SUS), da década de 1990; diferentemente do Sistema Único de Assistência Social e do Sistema Nacional de Educação, nós estamos falando de uma política pública vinculada a um problema que é muito mais complexo, multidimensional. Nós não vamos resolver com soluções fáceis e simples. Mas a constitucionalização do Susp é uma atitude corajosa do presidente Lula, e necessária ao país.
Como Niterói consegue impedir a entrada das milícias nas comunidades?
Nós criamos, na cidade, o Gabinete Integrado de Segurança Pública, que integra a Polícia Civil, a Polícia Militar, a Polícia Federal, a PRF, Ministério Público, prefeitura, guarda municipal e todas as ações de segurança pública, de forma integrada e inteligente. Esse gabinete foi muito importante nas ações de combate ao crime organizado e para proteger Niterói das milícias. Por outro lado, esse ciclo de governos progressistas implementou políticas públicas em territórios que, antes, em outras cidades, eram completamente dominados pelo crime.
Que políticas são essas?
Todas as comunidades de Niterói têm água e esgoto tratados, médicos de família, creche em horário integral, centros culturais, infraestrutura urbana. No fim de semana passado, eu estive com o (prefeito reeleito do Rio de Janeiro) Eduardo Paes (PSD) em algumas comunidades mais carentes de Niterói e ele me perguntou: ‘Rodrigo, tem certeza de que essas são as regiões mais pobres de Niterói?’. Todas essas regiões são dotadas de infraestrutura urbana e social, graças a esse ciclo de governos progressistas. Isso é uma barreira quase intransponível para o crime organizado, sobretudo as milícias, que tentam entrar nessas comunidades. Por isso, é preciso perseverar e avançar nessas políticas públicas nos próximos quatro anos.
O campo da esquerda colheu resultados ruins na eleição municipal. Qual a perspectiva para a próxima eleição presidencial, em 2026?
O trabalhismo é uma das correntes políticas que têm a melhor condição de construir novas perspectivas para o campo progressista e democrático brasileiro porque consegue dialogar com as diferentes classes trabalhadoras, com a classe média, e com pequenos e médios empresários. Por ter compromisso com a pauta democrática, educacional e social, consegue transcender, como fizemos em Niterói, o campo progressista, construindo maiorias com setores da centro-direita civilizada e com conservadores lúcidos, como Brizola dizia. Agora, o PDT tem que trabalhar no fortalecimento de novas lideranças nos estados.
Mas o PDT vem perdendo eleitores, importância, desmoronou no Ceará. Onde estão essas novas lideranças?
A (deputada estadual) Juliana Brizola (candidata do PDT à Prefeitura de Porto Alegre) teve um ótimo desempenho no Rio Grande do Sul (ficou em terceiro lugar, com quase 20% dos votos). O prefeito de Aracaju, Edvaldo Nogueira, levou seu candidato (Luiz Roberto) para o segundo turno (perdeu para Emília Corrêa, do PL). Evidentemente, o Ceará não é mais um estado que representa a força do PDT. Esse balanço, o partido tem que fazer nas próximas semanas, identificando os erros cometidos, os acertos e, sobretudo, construindo uma nova perspectiva que, no meu ponto de vista, passa pelo apoio à reeleição do presidente Lula. Mas é preciso construir uma alternativa democrática progressista para o pós-Lula. Nós precisamos preparar a centro-esquerda brasileira para isso.
O senhor defende a união das forças progressistas com partidos mais conservadores visando às próximas eleições?
Eu defendo que o PDT abra diálogo com o PSB do prefeito João Campos, de Recife, com o Cidadania e com o Solidariedade, para constituir uma federação dessa centro-esquerda, desse centro progressista, que pode dar a sua contribuição nos próximos cinco ou 10 anos nessa construção do pós-Lula.
O senhor se coloca como uma dessas novas lideranças? Uma das críticas que se faz ao ministro do Trabalho e presidente do PDT, Carlos Lupi, é que ele representa um pensamento antiquado do trabalhismo.
O presidente Lupi conduz com muita sabedoria o PDT desde a morte do nosso maior líder (Brizola), em 2004. Acredito que ele terá essa sabedoria para conduzir o partido no próximo período. E eu me coloco na condição de militante, à disposição para encontrar respostas, novas perspectivas no diálogo com a juventude, com o povo brasileiro.
Brasília e Niterói têm um ponto em comum, um aspecto que as une: a arquitetura de Oscar Niemeyer. Niterói é a segunda cidade com mais projetos do arquiteto que desenhou os principais prédios da capital do país. Por que Niterói abraçou a arte de Niemeyer, o que representa o investimento em cultura para a cidade?
A importância é central, faz parte da identidade de Niterói. Por isso nós vamos inaugurar, no ano que vem, a sala de concerto Sérgio Mendes, no novo Cinema Icaraí, que vai ser a sede da Orquestra Sinfônica Brasileira. Nós vamos implantar o Museu do Cinema Brasileiro, no caminho de Niemeyer (um trecho de 11km na orla da Baía da Guanabara, entre o Centro e a Zona Sul da cidade), a partir do ano que vem. E, em 2028, vamos inaugurar a décima e última obra do arquiteto no Caminho de Niemeyer, que é a Catedral de São João Batista, a catedral católica de Niterói, com uma cúpula de 70m de altura. Do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar as pessoas vão ver essa cúpula às margens da Baía de Guanabara que, eu brinco, vai virar o Rio Jordão.
Isso ajuda a chamar a atenção para a cidade, atrai turistas como acontece em Brasília?
Essa obra vai despertar ainda mais a curiosidade sobre Niterói. Oscar Niemeyer dizia que a catedral de Niterói era a obra mais bonita que ele projetou ao longo de toda a vida dele. As fundações já estão prontas e, agora, estão subindo as cúpulas de 70m. O trabalhismo transformou Niterói na cidade com melhor qualidade de vida do Estado do Rio. Nosso objetivo, agora, é transformar Niterói na melhor cidade para se viver e ser feliz no Brasil, com democracia e sem milicianos.
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